sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Cinquenta tons e tal

Pois eu já tenho cinquenta e oito.
E não é fácil ter cinquenta e oito
de qualquer coisa.
Ter tudo em tampinhas
de refrigerantes estrangeiros.
A quantidade em charutos importados.
Ter todo o tanto de figurinhas carimbadas.
A coleção em selos raros.
Ter a metade, que seja,
de amigos de verdade.
Um bosque de árvores cinquentenárias.
Abraços e beijos apaixonados.
As miniaturas dos objetos desejados.
Ter o visto permanente de entrada
para os países da Europa e da Ásia.
Ter tido tantos cães de guarda,
quanto a dor das perdas,
tenha  nos colocado  à prova,
e a sobrevida resistido incólume.
Guardados na gaveta
os cinquenta e oito melhores discos,  livros
e saudades escondidas lá no fundo.
Ter na memória os preferidos filmes.
Ter tido cinquenta e oito tons de sonhos realizados.
E não ligar nem mesmo um pouco
para os cinquenta e oito objetivos
nunca alcançados no passado.
O futuro será o fim de tudo.

Em tempo breve
terei a vantagem de pagar só meia,
por ter vivido uma vida inteira.
Ter a passagem num cartão de plástico.
A existência sustentável da grande cidade.
Sou de maioridade.
Entrar na fila dos idosos,
artéria da América Latina,
onde geme a dor dos povos.
Cinquenta e oito tons e talvez alguma sorte.
E a certeza de que a cada novo,
serei um mais velho.
E a cada nova etapa ultrapassada...
será mais difícil atingir a próxima.
Vou precisar tomar cinquenta e oito remédios
para cinquenta e oito doenças adquiridas,
que vão me custar cinquenta e oito dinheiros.
E vão me dizer que, agora sim,
cheguei à melhor idade...
Que gente engraçada!
 


 

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Na terra de Aruanã

Se o sopro da tua voz
acelera o meu coração.
O medo do amor arrefece.
O grito sai mudo
como legenda de gibi:
Todo sim é início do não.

Dizer-te estrelas,
quando só luas se tem pra contar.
Falar de flores com um punhado
de sementes na mão.
Sonhar os beijos d’antanho
nos improváveis de Aruanda.

Abrir sorrisos.
Levantar tufão interior
quando bate ponto...
é arremesso de peteca
em quadra de tênis.

Burlar o susto, saltar o tempo.
Buscar o teu endereço
na  contracapa do livro.
Inaugurar um baticumbum
na contramão da estrada.
E seguir a viagem
pra nunca se chegar.

Dunas e montes.
Atrás de riachos profundos,
onde Aruanã guarda tesouros.
Na terra dos sem mal
claros segredos.

Ontem eu fui ao teu encontro
Você havia saído com a poesia.
Enfiaram nos teus seios
versos decassílabos.
Eu me fingi de soneto.

Pra verter com exatidão.
A obra da natureza pintada no Céu.

Como desejei ser o poeta...
A viajar no teu corpo.
Tecer cada letra
no vagar de uma estrofe.
Buscar nos seres que te habitam.
Apenas um que me amasse!

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Feliz Aniversário

Fazer aniversário
era melhor antigamente.
Traçava o bolo na manteiga.
Encomendava um guaraná Antártica.
Botava o disco na vitrola
e pronto...
Fazia cinco, seis, sete...
Sem contas.
Pouco importava quantos.
Era uma festa só.

Agora...
Nestes tempos modernos
Bolo já vem com glúten
Refrigerante com rato
A fantasia ardeu
no último carnaval.

E quantos se faz,  então...
É de perder a conta.
Dói na alma e lava o corpo inteiro.
Pesa um tantão assim.

Joga a festa no facebook
e os sorrisos congelados
vão  iluminar a linha do tempo.
Para um dia serem lembrados...
Fazer aniversário...
era  melhor antigamente.

Que Nossa Senhora de Schoenstatt proteja a minha esposa no seu aniversário e o tempo que lhe restar ainda para comemorar outros. Que sejam muitos, para que no derradeiro, a gente possa lembrar,  deste de hoje (16.10.2013), como antigamente...

Ó minha Senhora, ó minha Mãe, eu me ofereço todo a Vós! Em prova de minha devoção para convosco, vos consagro neste dia os meus olhos, meus ouvidos, minha boca, meu coração e inteiramente todo o meu ser. Porque assim sou vosso, ó incomparável Mãe, guardai-me e defendei-me como coisa e propriedade vossa. Amém!
 
 

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Suspeito de viver


Ao meu camarada Armando que dizia ser azul pra enganar quem o perseguia. Sumiu. Nunca soubemos de seu paradeiro.

Ao meu melhor amigo, Carlos Augusto, o Guta, que teve o olho de seu filhinho perfurado por “bala perdida”.

A minha tia Cida que, muitas vezes nos emprestou canecas de arroz e feijão crus, para termos o que comer. Nosso débito já deve ultrapassar meia tonelada.

Ao meu pai, José Ferreira de Lima, o Pinga, que trazia pés e pescoços de galinha, restos do restaurante do Flamengo, para ser a nossa canja, quando havia arroz.

Ainda “in memoriam” de meu pai que, mesmo nos momentos de extrema miséria, sempre nos ensinou que,  na vida, o que mais importa é a própria vida. “Não vale se sujar nem por tostão nem por milhão”.

Por fim, a Amarildo que só conheci pela imprensa. Mas convivi com a sua história ao longo da existência. Foram milhares de Amarildos que não tiveram a mídia ao lado. Mas que sofreram na carne o peso da chibata dos mesmos senhores.

Senhores da capital e do Capital. Perdoem-nos por todos os Amarildos que ousaram nascer. Perdoem-nos pelo
 crime de nascermos pobres.



 
Você é negro favelado.
Já perdeu o rebolado.
Quem mandou você nascer?
Você é suspeito de viver.

Não me olha de banda
que eu não sou quitanda.
Nem carrega na quimbanda
que o meu Quilombo é na África.

Me economiza!
Me erra!
Não me atira
seu olho gordo de fome.
A expiação desta vida
não vão te pagar.

Banda a lua.
Expurga o sol.
Pra terra da assombração
quem mandou vir, seu moço?
Pro almoço pés e pescoços
de galinhas, avezado.
Caldo de cabeça de peixe
no prato de lata de doce.
Ninguém quer ser convidado.
Passam ao longe da tua fome.

Os homens estão desconfiados.
Andam investigando os teus passos.
Na noite invadida,
por que tanto interesse na minguante?
E que tanto miravas na moça bonita?
Olhavas as marmitas...
Observava o movimento das padarias.
O que fazia de tocaia,
Na banca de bananas da feira livre?

Te cuida, seu moço!!!
Você é suspeito de viver!
Passa curtinho a tua marra.
Não avacalha o nosso serviço.
Tira este riso da cara!
Que ao feio não é permitido sorrir.

Onde esconde os esconderijos?
Entrega logo a cambada!
Diga quem foi que matou
quem não morreu?!

Sujeito folgado de honra amassada.
Nem lanterneiro te arruma...
Apruma o rumo!
Ajeita um jeito.

Se me sujar do teu sangue.
A tua família vai lavar a minha farda.
A tua ficha já foi levantada.
Você é suspeito de viver...