quinta-feira, 28 de maio de 2009

Refavela

Homenagem a algumas das pessoas com quem dividi as vielas da minha querida Favela do Parque da Cidade. Éramos uma vila de proletários. Gente feliz que partilhava com o próximo uma caneca de feijão ou um punhado de arroz. A solidariedade humana era um bem comum.

Dona Maria Petica pechincha
na birosca do seu João:
Quer dois quilos de carne-seca,
meio de paio e uma sobremesa das Gerais.

O seu João da birosca
importou 35 parentes
no Natal.
Quer fundar uma nova Olinda
no Parque da Cidade, no alto da Gávea.

Onde passa um bloco de lata no carnaval.
Latões comprados no laboratório
Moura Brasil. Santo remédio contra a tristeza.
Guta na harmonia, Vavá no repique
e o povo na alegria tirada do batuque.

As bailarinas do samba
desfilam a vinte centímetros do chão.
São deusas momescas
que não ousam macular o solo sagrado.

O tilintar dos botijões de gás traz
a sonoridade para a fila explosiva de sábado.
Em nossa seca particular
centenas de latas de vinte abastecidas
na única torneira do lugar.
Carregam um rio enlatado morro acima.
Na inversão do leito natural
das águas bentas.

Antônio maluco,
carregador oficial
de material de construção.
Quem te carregou o juízo?

Chefinho, de fala mansa,
passos curtinhos, concorrente único
do maluco no ofício de carregar.

Passinho, goleiro do Botafogo
que deixava a bola passar sob as pernas
para defendê-la pelo rabo num salto mortal.

Sua mãe, Dona Maria,
nas noites de sexta-feira,
reunia a criançada para contar
estórias de encantamento,
do tempo do era uma vez.

Havia ainda outra Maria,
que era a Mira, minha mãe.
Esta detinha o segredo,
do milagre da multiplicação dos pães.

A tia Cida,
mãos benfazejas,
enfermeira e parteira
a receber novas vidas
e a salvar outras tantas.

A senhora Dona Lica,
domadora de luzes,
nos rezava de quebranto,
costela caída e espanto.
E nos curava de encosto
e de desgosto de amor.

O Pinga bêbado
caído na vala.
Meu super-herói preferido
O que melhor sabia voar
e vencer os percalços da existência.
Este lhes digo com orgulho,
pernambucano arretado
de quatro costados e um tratado:
até o fim da missão, seria ele o meu pai.

Rico, amigo raro
dos gols articulados no campo das madres.
Nos sonhos de estudar tanto até se formar cidadão.
Por quê Deus te quis tão cedo nos Reinos do Céu?
Devia estar precisado de reforço no time dos anjos.

Ninguém pode imaginar
o que seja o cantar dos galos na madrugada,
o latido dos cães no passar dos cavalariços,
o uivo da mula-sem-cabeça,
antecedendo as tempestades.
É lá no morro que os sonhos
existem com maior intensidade.

Na refavela tudo pode mudar
a qualquer tempo.
Só depende de como Deus
queira nos olhar.

E sabíamos tantas Marias
e também tantos Josés
que se Deus precisasse
de substitutos,
formaríamos filas de candidatos
para a procissão de fé.

2 comentários:

  1. Tio de todas essa e a mais bonita ! eu ate fiquei amocionada com a parte que voce fala do meu avô e das pessoas que la naquele morro passou nas nossas vidas grande beijo , te amo ♥

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  2. Caro irmão
    Só tenho a te agradecer por tudo que passamos na nossa infância, achei muita linda essa poesia, ela me fez lembrar da nossa infância quando você fala de nossos vizinhos e fiquei mais emocionado ainda quando você fala do nosso PAI, que Deus o tenha, fico sem palavras quando falo ou penso nele.
    Muito obrigado por você ter escrito alguma coisa sobre ele.
    ah, muito obrigado também pela poesia em homenagem ao meu filho Rodrigo.
    Fique com Deus e que ele te ilumine sempre para que você continue transformando suas palavras em letras.

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